Carta enviada à Relatora Especial das Nações Unidas para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão
Cara Sra. Irene Khan,
As organizações não governamentais e acadêmicas que compõem a Coalizão Direitos na Rede gostariam de expressar sua preocupação a respeito de uma futura legislação brasileira que, com o objetivo de estabelecer novos mecanismos para a preservação do Estado Democrático de Direito, pode resultar na criminalização de milhões de usuários da internet no País.
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À luz do novo relatório “Desinformação e Liberdade de Opinião e de Expressão” apresentado durante a 47ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, atualmente em curso, gostaríamos de trazer à atenção da Relatora Especial da ONU uma questão urgente relativa à aprovação iminente de um novo crime contra a desinformação no Brasil.
Isso ocorre apesar da oposição de diversas organizações civis que trabalham com direitos humanos e tecnologia e que defendem a supressão desse crime. Aproveitando a oportunidade do novo relatório sobre desinformação, acreditamos firmemente que uma manifestação pública de preocupação por parte da Relatora Especial da ONU, Sra. Irene Khan, seria um fator decisivo para que essas vozes sejam ouvidas pelos senadores brasileiros.
A disposição é parte do projeto de lei brasileiro [1] que revoga a atual Lei de Segurança Nacional, que prevê novos crimes contra o Estado Democrático de Direito. O projeto de lei cria o crime de “comunicação enganosa em massa”, que pode levar a uma pena de prisão de até 5 anos. A disposição traz as complexidades da luta contra a desinformação online para o âmbito de uma lei que deveria lidar excepcionalmente com ameaças graves ao Estado de Direito e, ao fazê-lo, ela potencialmente transforma milhões de usuários da internet em criminosos graves.
Este é o texto atual da disposição [2]:
Art. 359-O. Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privado, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de comprometer o processo eleitoral:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
É relevante destacar que esse projeto de lei teve uma aprovação apressada na Câmara dos Deputados e será finalmente votado no Senado na semana que vem. A inclusão de uma disposição sobre desinformação passou por cima de outras discussões legislativas em curso sobre o assunto, particularmente a “Lei das Fake News” [3], que acreditamos ser um instrumento mais adequado para criar respostas legislativas a uma questão tão complexa e multifacetada (embora também seja necessário um cuidado adicional com as disposições penais propostas relacionadas à disseminação de misinformação e desinformação, mesmo na “Lei das Fake News”).
O crime de “comunicação enganosa em massa” previsto no projeto de lei do Senado nº 2108/2021 não está alinhado com as preocupações e conclusões salientadas no relatório sobre desinformação da Sra. Irene Khan. O texto contém termos excessivamente amplos, tais como “promover”, ou “iniciativa”. Mais importantemente, ele criminaliza o discurso para muito além das circunstâncias excepcionais e flagrantes reconhecidas pelos padrões internacionais em matéria de direitos humanos. Caso aprovado, será mais um exemplo de uma resposta desproporcional por parte do Estado, passível de ter um impacto negativo nos direitos humanos, em especial na liberdade de expressão e de opinião.
Agradecemos desde já a sua consideração, e estamos à disposição do Escritório para quaisquer esclarecimentos.
Brasil, 02/07/2021
Coalizão Direitos na Rede